Passado é passado.

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[ Este texto foi escrito a partir do preparo para uma palestra realizada com o mesmo título. ]

Introdução

A expressão “passado é passado” é bastante usada por nós e em geral vem associada ao término de alguma situação que nos causou incômodo, dor ou sofrimento, da qual não queremos mais nos lembrar. O passado pode nos remeter a experiências dolorosas e também a experiências leves, positivas, felizes. Ao mesmo tempo em que pode nos aprisionar, pode servir de referência para o nosso aprendizado, nos conduzindo a escolhas melhores, evitando que cometamos os mesmos erros.

As memórias que guardamos podem ser comparadas a objetos antigos que vão sendo guardados em estantes, gavetas, caixas… de modo similar acabam ocupando um espaço sutil em nosso subconsciente, podendo emergir em nossa mente seja ao nos defrontarmos com situações semelhantes às já vividas, seja por uma simples recordação voluntária.

Em casa há uma coleção de cartões postais antigos, da época dos meus avós e bisavós (alguns com mais de cem anos!). Eles eram enviados como uma maneira gentil de dizer um ao outro “estou passeando por este lugar e me lembrei de você”. Na frente, uma imagem, o retrato de uma paisagem e, no verso, uma mensagem escrita à mão, um selo carimbado e datado e o endereçamento. Após décadas, “pedaços de papel” como esses podem adquirir um alto valor de estimação e até de venda, seja por sua raridade, por seu estado de conservação, ou por quem escreveu neles.

Junto aos cartões postais da família, encontrei um cartão com o mesmo formato, porém nada mais era do que um anúncio de um novo hotel na Itália, representado por uma detalhada ilustração de sua fachada, pontuando os diferenciais do local. No verso, escrito a lápis, pode-se ler a data “20-11-935”, e logo abaixo uma lista de compras com legumes e outros produtos de mercearia (!). Fiquei pensando sobre quanto valor poderia ter este simples cartão atualmente. Não passa de uma anotação cotidiana, porém feita há quase 90 anos, portanto capaz de gerar admiração e curiosidade, além do desejo de guardar como recordação. Quantos folhetos que recebemos hoje acabam servindo de bilhete ou lista de compras e simplesmente são jogados fora em seguida? O que torna o passado tão memorável em nós? O que torna algo comum em valioso ou importante?

Atribuição de valor

Me lembrei da seguinte frase, atribuída ao filósofo Søren Kierkgaard, que vi em um documentário há alguns anos:

“If you name me, you negate me. By given me a name, a label, you negate all the other things I could possible be.”
Tradução: “Se você me nomeia, você me nega. Ao me dar um nome, um rótulo, você nega todas as outras coisas que eu possivelmente poderia ser.”

Adaptando a frase às nossas memórias, é como se ao resgatá-las – seja por relembrarmos de uma situação, de um momento ou de uma pessoa -, aquilo que é lembrado passa a ser rotulado de “bom” ou “ruim”, de “maravilhoso” ou “traumatizante”, por exemplo. Quanto mais voltamos ao passado e revivemos determinada memória enquanto vivemos, mais significados atribuímos a ela, tornando-a cada vez mais distante e complexa do que realmente foi quando aconteceu, ou seja, mais distante da realidade, passando a ser uma construção mental a partir de significados atribuídos por nós mesmos.

Esse constante resgate do passado acaba ocupando espaço em nossa mente e interferindo na nossa experiência do momento presente.

De quais maneiras somos atraídos ao passado?

Saudosismo

Todos conhecemos alguém (ou reconhecemos essa característica em nós mesmos) que frequentemente diz frases do tipo: “no meu tempo tudo era diferente, tudo era melhor”.

Não há nada de errado em nos lembrarmos dos dias de nossa infância ou dos momentos felizes que vivemos no passado. O problema é quando essa ideia se torna predominante em nossas vidas, nos levando a sempre considerar o momento presente como negativo, sem graça, sem perspectivas.

Essa atitude de sempre estar olhando para o que passou demonstra o quão apegados e descontentes estamos internamente, ou seja, é como se tivéssemos estagnado nossas vidas, deixando de criar novidades e perspectivas que motivem novas iniciativas.

Culpa e ressentimento

Às vezes nos sentimos culpados por alguma coisa que dissemos ou fizemos e, sempre que nos lembramos da situação, vem aquele peso na mente para nos assombrar.

A culpa encobre nosso senso de dignidade ao limitar nossa autopercepção de valor. Obviamente, se causei algum mal, de algum modo a vida irá me cobrar o acerto desse débito para que eu me neutralize. Se eu verdadeiramente reconheço o mal que causei, o erro que cometi e se, com sinceridade pura, me determino a me verificar para não errar da mesma maneira, devo seguir em frente, não permitindo que a culpa me paralise ou me destrua.

De nada adianta cultivar pensamentos negativos e autopunitivos, pois eles só irão deteriorar nosso estado mental e emocional ainda mais. Perdoar-se é dar a si mesmo uma nova chance, e não privar-se de oferecer o que tem de melhor em si para o mundo.

Sob o olhar da espiritualidade, toda energia que emitimos por meio de pensamentos, palavras e ações retornará com a mesma qualidade, o que chamamos de lei do carma. E não tem como burlar essa lei ou omitir alguma ação porque ela é automática.

Assim como podemos nos perdoar e nos dar uma nova chance, podemos fazer o mesmo com os outros. Se realizada de forma genuína, a atitude de perdoar traz alívio e a possibilidade de transformação e reconciliação; a própria palavra nos isnpira: perdoar = para doar.

Hábitos, crenças e traços de personalidade

Todos temos alguns traços de personalidade baseados em fraquezas e negatividades, como raiva, ciúmes, impaciência. Embora os reconheçamos e tentemos muitas vezes nos desvencilhar deles, nem sempre obtemos sucesso.

Compreendemos, sob o olhar da espiritualidade, que nosso modo de ser atual nada mais é do que fruto/resultado de caminhos percorridos anteriormente com a nossa consciência. É como se o nosso “terceiro olho” – nossa capacidade de ver amplamente – tivesse fechado gradualmente ao longo de nossa vivência aqui no mundo físico. É como se tivéssemos adormecido e fôssemos capazes de ver apenas um pequeno segmento de nós mesmos e dos acontecimentos.

Podemos querer ser mais gentis, generosos ou corajosos do que costumamos ser, mas o sucesso nessa tarefa dependerá do quanto investirmos de nosso tempo para criar um estoque de paz, amor e poder e ao elevarmos nosso olhar para além do próprio ego.

Esse autocuidado nos torna atentos a cada passo dado no momento presente, com a consciência nos alertando para as consequências que o futuro nos reservará.

Como me liberar do apego ao passado?

  1. reconhecer e identificar que certas atitudes desperdiçam muito tempo e energia mental;
  2. aprender a perceber que, por mais doloroso que tenha sido algum acontecimento, trouxe algum nível de mudança, estimulou a assumir novas posturas, mais maduras, ou seja, trouxe algum benefício;
  3. aproveitar o momento presente para ocupar a mente com atividades que estimulem o progresso do “ser interior” e colocar em prática um pensar, falar e agir alinhados à espiritualidade, sabendo-se que cada segundo é oportunidade de registrar uma nova cena no “filme” da vida.

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